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Harleen de Stjepan Sejic – O Ultimato

Em 9 de Dez de 2022 5 minutos de leitura
Harleen de Stjepan Sejic (2)

Conheça os detalhes da mais comentada história de origem dos últimos tempos em: Harleen de Stjepan Sejic (2019)

Harleen é a versão da história de origem da Arlequina para o selo DC Black Label que, como de costume, dá bastante liberdade criativa ao autor. O nome do quadrinho é providencial, pois a HQ foca todos os acontecimentos na Dra. Harleen Frances Quinzel, jovem e idealista psicóloga – não na vilã fantasiada –.

O quadrinho saiu originalmente em três capítulos, cada um com pouco mais de 60 páginas, em 2019. No ano seguinte, a Panini lançou o mesmo formato em terras brasileiras. Em 2022 saiu a edição de luxo, capa dura, sobrecapa e extras, 216 páginas.

O autor, responsável pelo roteiro e arte, é o croata Stjepan Šejić. Entre 2015 e 2016, havia feito algumas tirinhas com cenas diversas do roteiro que seria construído antes de expor a ideia ao editor da DC Andy Khoury. A minissérie foi aprovada em 2018.

O desenho de Šejić lembra muito Fiona Staples (Saga), moderno e digital, com uma paleta de cores normalmente de inverno, característica de trillers – que se altera suavemente em detrimento de momentos específicos da HQ –.

Qual a trama de Harleen de Stjepan Sejic 

Arlequina é a narradora da história. Em um Simpósio Educacional no Centro de Estudos de Psicologia Forense, Harleen apresenta a hipótese de que sob estresse extremo, como o vivido durante ataques em zonas de guerra, por um instinto de sobrevivência, a química cerebral responsável pelo sentimento de empatia é suprimida.

No caso da manutenção dessa condição por um longo período de tempo, então, poderia ocorrer a deterioração permanente da empatia, gerando comportamentos antissociais.

O objetivo dela era fazer suas pesquisas no Asilo Arkham e na prisão Blackgate para desenvolver um método de detecção dos estágios de deterioração da empatia. Poderia resultar, inclusive, no aumento da ressocialização dos vilões. Poucos investidores se interessam pela ideia.

Harleen de Stjepan Sejic (5)

No quadrinho, o destaque é para Harleen, psicóloga, e não para Arlequina

No bar, em seguida, Shondra, a melhor amiga, sugere que a forma de conseguir bons trabalhos e financiamento de pesquisas é propor soluções farmacêuticas que geram lucro – vamos conhecendo o aspecto aparentemente honesto e ético-profissional raro da protagonista, sobretudo comparado ao da parceira –.

Já na rua, Harleen vê a morte de perto em um episódio traumático, quando o insano Coringa aponta a arma para sua cabeça em uma de suas caóticas aparições pela cidade. O vai e vem dos pensamentos dela, associando coisas que acontecem em determinados momentos com outros distantes, vai nos mostrando muito da história e personalidade da personagem de forma não linear.

É durante o episódio com o arqui-inimigo do Batman que descobrimos que mesmo sendo ótima aluna na faculdade, Quinzel passou por uma experiência que a deixou malfalada e solitária pelo resto da carreira – válido salientar que, em comparação à história de origem de Louco Amor (1994), a personalidade da psicóloga é invertida, não sendo mais a aluna de notas baixas que sai com o professor em troca do diploma –.

Todo esse preparativo antecede a visita de Lucius Fox, conselheiro científico da Fundação Wayne, ao Centro de Estudos, para dar a notícia de que irá financiar o projeto e ajudá-la com as autorizações de entrada no Asilo Arkham e no Departamento de Polícia de Gotham City (DPGC).

A sequência da HQ vai mostrando o dia a dia de Harleen, sua adaptação ao Arkham, o convívio com os outros profissionais do local, normalmente céticos, e com os criminosos. Ela reluta em encontrar com o Coringa.

No momento em que o faz, vai construindo o relacionamento entre clínico e paciente que, como sabemos, percorrerá caminhos tortuosos. Šejić mostra tudo isso em detalhes, sem pressa, e delineando os anseios, dramas e reflexões da protagonista.

Em determinada entrevista, Harleen consegue tirar o que parece ser a teoria do Coringa para a maldade. De acordo com ele, cada cidadão é, na verdade, um monstro disfarçado. Todos teriam fantasias de matar seus inimigos, mas reprimem isso e preferem estampar um sorriso falso.

Uma vez que a máscara que esconde o monstro, por algum motivo, estoura, ela não volta mais – essa crença já foi mostrada em outras HQs, como Piada Mortal (1988) –. O papel do sorriso na teoria é impecavelmente colocado por Šejić, já que, quando o monstro aparece, os sorrisos são verdadeiros, objetivo/fetiche do Coringa.

Harleen de Stjepan Sejic (4)

Harleen vê a morte de perto ao se deparar pela primeira vez com o Coringa

A vivência de Harleen no Arkham permite que vejamos diversos vilões, onde se destacam Hera Venenosa – que futuramente, ao menos no universo canônico, acaba tendo um relacionamento com Arlequina – e o Crocodilo.

A história de origem do Duas Caras também é contada. O que parece uma escolha aleatória do autor, com o passar das páginas se mostra incrivelmente relacionada com a história de Harleen.

Inicialmente, ele faz total oposição à psicóloga, em vista de que seu trabalho poderia ser usado para favorecer advogados de defesa dos supercriminosos. As duas histórias de origem se encaixam perfeitamente e rumarão ao ápice da HQ, mas não teremos mais spoilers aqui.

Vale a pena ler?

Dois pontos me chamaram bastante a atenção em Harleen. O aprofundamento da história da psicóloga e a contraposição das teorias psicológicas dela e do Coringa para conduzir o roteiro em campo fronteiriço ao da filosofia: o homem é originalmente mau e se torna bom ou o inverso?

Freud tem uma resposta para isso ao nos apresentar a dualidade das pulsões de vida e de morte, embora a alegoria do pai da horda possa caminhar, a priori, pela primeira opção, dando a entender que o pacto social surge da necessidade de conter a predisposição individualista de cada um refletida no mais forte. Mas o amor pelo pai está sempre lá. Falta ao psicopata, obviamente, esse amor/alteridade.

As dúvidas e tensões do enredo são muito bem postas por Šejić. O Coringa está apaixonado por Quinzel, está apenas a usando ou as duas coisas? A psicóloga se apaixonou inconscientemente pelo palhaço no fatídico dia em que teve uma arma apontada para a cabeça, em uma espécie de Síndrome de Estocolmo, ou enquanto foi vendo que ele teria um lado “humano” que apenas ela descobriu? Esta é a conclusão da autoanálise de Harleen. Ou, ainda, o Coringa foi a seduzindo fria e calculadamente? A única coisa que posso adiantar é: não espere objetividade nas respostas…

Voltando a Freud, uma de suas obras pode levar a uma interpretação. Durante toda a HQ, Harleen é atormentada por pesadelos. A Interpretação dos Sonhos (1899) afirma que os sonhos são, sempre, representações do passado e nunca do futuro.

Oras, se ela sonhava antes de ir para o Arkham com o Coringa em posição frágil e com o Batman como um morcego monstruoso – veja a imagem abaixo –, pode haver um “pré-conceito” determinante aí e, de alguma forma, ela é mais protagonista de suas escolhas do que parece.

Harleen de Stjepan Sejic (3)

Os pesadelos com Coringa e morcegos são uma constante na HQ

Vale pontuar que a face do Coringa em Harleen é jovial e sedutora, diferente do que estamos acostumados – principalmente se tivermos como base Jack Nicholson e Heath Ledger nos cinemas –. O próprio autor explica nos extras da edição de luxo que imaginou o vilão como um rockstar no estilo David Bowie.

Para a construção do Coringa, sobretudo para quem é fã do personagem, isso soa extremamente duvidoso. Mas não podemos nos esquecer que a história é contada pelos olhos da protagonista, uma jovem apaixonada, como uma adolescente ingênua que adora o vocalista de alguma banda. Por esse lado, a escolha faz sentido.

Os recursos de aproximação e aprofundamento na personagem utilizados por Šejić são ótimos. A falta de linearidade nos pensamentos de Harleen é um exemplo, pois se assemelham aos nossos, que normalmente não são sequenciais ou metodológicos. Dessa forma, o autor consegue torná-la mais humana e dar fôlego a seu passado. Parece inspirado no que Daniel Clowes fez com os diálogos de Ghost World (1997).

É difícil comparar Harleen e Louco Amor, a primeira história de origem da Arlequina, no sentido de determinar qual a melhor, pois são propostas totalmente diferentes. Podemos dizer que Harleen tem sucesso em trazer uma discussão psico-filosófica interessante ao enredo e fazer uma atualização da personagem para os dias atuais.

O jogo de xadrez carregado de paixão entre Harleen e Joker é ótimo de acompanhar. A complexidade com que o autor trabalha todos os coadjuvantes é digna de nota. E Šejić, apesar de meticuloso, deixa muita coisa para o leitor pensar e construir.

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Avaliação: Ótimo!

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Harleen de Stjepan Sejic (1)


Créditos:
Texto: David Horeglad – @hq_ano1
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
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