Ultimato do Bacon

Ghost World (1997) – O Ultimato

Em 26 de Ago de 2022 5 minutos de leitura
Ghost World (1998) – O Ultimato

Conheça o clássico cult que inovou ao trazer diálogos como eles são em: Ghost World

Tem acontecido de vermos artistas trintões ou quarentões produzirem sobre os anos 1990 em que viveram. Creio que, ao menos para minha geração – dos trintões –, isso soa bem nostálgico.

Quem lê Ghost World (1997) pela primeira vez sem se informar um pouco melhor, tem a sensação de que se trata de uma dessas obras. Uma história sensível de humor leve e mordaz sobre a amizade de duas garotas na fase pós-ensino médio e pré-universidade.

O curioso é que o premiado quadrinista Daniel Clowes nasceu em 1961 e tinha seus mais de trinta anos quando começou a escrever essa HQ nas páginas da revista independente Eightball #11, em 1993. A conclusão veio em 1997 na edição número #18 e a coletânea completa no mesmo ano, pela Fantagraphics.

Além do carisma inusitado das personagens, eis o que chamou a atenção da crítica: a complexidade e verossimilhança com que ele criou as reflexões, dramas e diálogos cotidianos das protagonistas.

Diz Clowes, no prefácio à edição especial de 10 anos da obra, que elas têm uma mistura dele mesmo, da esposa, das garotas de sua juventude e do incômodo que sentia na falta de profundidade com que adolescentes eram abordados na mídia até então.

Em 2017, a editora Mino publicou a tradução da edição especial de 20 anos de Ghost World, em preto, branco e ciano – cor usada para os efeitos de sombra –.

As mais de 130 páginas – 80 de novela gráfica – contam com muitos extras interessantes, incluindo notas do autor, fotos dos lugares que inspiraram as ambientações da HQ, tiras, esboços e capas de outras edições. Clowes tem traços limpos que lembram Charles Burns.

Qual a trama de Ghost World

O quadrinho inicia com Enid Coleslaw e a melhor amiga, Rebecca Doppelmeyer, em um momento de ócio falando sobre banalidades no quarto. A cena se repetirá.

Enid critica uma revista feminina e um comediante popular que Rebecca está curtindo na TV. Em seguida, fala sobre um pseudojornalista conhecido que encontrou no Angel’s, lanchonete preferida das duas.

John Ellis era o nome dele e, da última vez que havia entrado no local, foi com um ex-padre católico ligado a pornografia infantil.

Após o caso bizarro, Enis fala sobre um casal que acredita ser de satanistas. Um velho frequentador do Angel’s, Bob Skeetes, confirma as impressões.

Ghost World (1997) – O Ultimato

A base da HQ são os diálogos entre Enid e Rebecca

Os diálogos, apesar de os temas estrambólicos, soam reais. Conversas raramente são tão polidas como as que vemos nas obras de fantasia. Costumamos estar falando de um assunto e com uma mera lembrança ou acontecimento pular para outro.

Depois alguém puxa aquele fio da meada anterior – ou não –. Do que eu estava falando mesmo? Ah, sim, essa imperfeição da vida real está em Ghost World.

É por meio das fofocas e início sem grandes emoções que vamos conhecendo a personalidade de cada uma e os personagens coadjuvantes da HQ. Enid tem mais atitude, é mais falante, inquieta e irônica.

Já Rebecca tem um perfil “garota comum”, com padrão de beleza eurocêntrico. Ambas críticas e com certo ar de superioridade em relação a tudo o que está a volta.

Um dia, Enid aparece de cabelo curto e pintado de verde com jaqueta de couro. Rebecca brinca com o fato de fazer tempo que ela não tem um “punk day“, o que é suficiente para ouvir xingamentos pesados.

Enid muda o visual diversas vezes, excêntrica e diferentona – a famosa capa da edição brasileira mostra o adorno com antenas na cabeça dela, um dos diversos exemplos –.

Vamos percebendo o limbo em que se encontram as amigas. Enid está procurando seu “eu” adulto, uma identidade. Ainda não encontrou e não quer ser rotulada por terceiros. Enquanto isso, a questão de Becca é o processo de luto ao perceber que toda aquela vida que ela gosta, ao lado de Enid, vai acabar.

Esse aspecto nostálgico é reforçado quando elas se atentam aos antigos detalhes do bairro e da cidade. Uma pichação, a lanchonete, os caminhos e transeuntes recorrentes, os álbuns de fotografias… Um dos conflitos entre as duas se dá quando Becky descobre que Enid está estudando para o vestibular de uma universidade, “por vontade do pai.” Até a amizade, com a distância, está em risco.

Os romances e experiências sexuais não poderiam faltar. As duas se provocam constantemente sobre os possíveis “crushes“, como elas chamam os interesses amorosos. Um personagem surge com bastante destaque: Josh, amigo das duas. É ele que é chamado quando elas precisam de um apoio ou opinião masculina e está sempre disposto a ajudar.

Obviamente, isso acabará dando viés para um possível triangulo amoroso. É todo esse contexto singelo do cotidiano, vivenciado visceralmente pelas duas amigas, que vamos acompanhando em uma cidade inominada, cheia de shoppings e subempregos.

Vale a pena ler?

Ghost World é um clássico dos quadrinhos. Apesar de não ter o mesmo apelo de histórias de super-heróis, teve muito sucesso e ganhou diversos produtos, como as bonecas de Enid e até longa-metragem, Ghost World – Aprendendo a Viver (2001), protagonizado por Scarlett Johansson – confesso que nunca assisti –.

Ghost World (1999) – O Ultimato

O rabecão comprado por Enid pode dar dicas do que está havendo: luto. De quem?

Boa parte do que vemos sobre a vida e as emoções de Enid e Becca – como o luto da adolescência no fim e a busca de identidade – não é falado diretamente nem colocado em recordatórios. Fica na progressão dos quadros e nas entrelinhas. A forma de contar o quadrinho gera impacto pela verossimilhança.

E a profundidade emocional do cotidiano retratado, por si só, é elemento primordial da trama. Clowes nos apresenta a adolescência como um processo de luto que é. Toda grande transformação gera isso, pois um passado é perdido. E essa é uma das maiores transformações na vida de uma pessoa.

O adolescente pode deixar para trás escola, pais, célula familiar, casa, bairro e até a aparência e o corpo que tinha. Os amigos da juventude, que muitas vezes foram pontos de segurança nesse período, também podem desaparecer. As vezes pela própria falta de reconhecimento de um no outro.

Vemos a descoberta do paradoxo adolescente de que tudo aquilo que sempre foi criticado, na verdade deixará saudade. Se isso acontece com garotos e garotas, Clowes teve sensibilidade para retratar tais acontecimentos e emoções dentro das particularidades do sexo oposto, o que mostra o quão habilidoso ele foi ao fazer a obra.

Talvez falte um pouco daqueles momentos em que os jovens vão para baladas, shows ou fazem grandes bobagens. Mas aí viraria mais uma produção clichê de humor pop ou romance água com açúcar norte-americano.

O recorte introspectivo e profundo funciona bem melhor. Na prática, por incrível que pareça, ele consegue segurar a leitura sem a necessidade de grandes reviravoltas ou momentos de ação.

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Avaliação: Excelente!

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Créditos:
Texto: David Horeglad – @hq_ano1
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
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