Um mergulho na cultura da América Latina e da Argentina espera pelo leitor na HQ Perramus de Juan Sasturain e Alberto Breccia. A magnífica arte de Breccia se une ao inteligente e ácido texto de Sasturain para criar uma obra única que se sobressai pela reflexão que ela é capaz de causar no leitor. Os personagens, em especial o personagem título, são carismáticos e muito bem construídos – prepare-se para encontrar com figuras históricas que participam ativamente da trama (Fidel Castro e o escritor Jorge Luis Borges são dois bons exemplos).
Perramus de Juan Sasturain e Alberto Breccia é uma epopéia composta de quatro graphic novels – a primeira em 1982 e a última em 1989. Cada uma das tramas traz uma narrativa diferente sendo a última, “Dente por Dente”, a mais aventuresca e divertida – pessoalmente acho que é a que consegue fazer melhor o papel de entretenimento e não por outro motivo é a minha favorita.
A leitura dessa obra de Juan Sasturain e Alberto Breccia, que chegou ao Brasil em versão integral em 2021 pelas mãos da editora Figura, é densa e cheia de referências. Vale esse alerta pois o leitor que busca uma leitura mais fluída e leve não vai encontrar o quer em Perramus. A obra se destaca pelo ritmo único e pela densidade de seus ótimos diálogos – você precisa estar no “clima” para realmente absorver a narrativa.
Dica para o leitor: Conheça outras obras do lendário Alberto Breccia nos nossos reviews de Viajante de Cinza, Ninguém e Mort Cinder.
Cena da última aventura da HQ Perramus de Juan Sasturain e Alberto Breccia
A trama de Perramus de Juan Sasturain e Alberto Breccia
Perramus é um homem que vive na cidade de Santa Maria (uma espécie de Buenos Aires) e que escapa dos Marechais – homens que impõe um regime ditatorial assustador no país. Infelizmente nosso protagonista escapa sem seus companheiros e isso faz com que ele sinta uma culpa sem igual. Nessa noite de fuga ele ganha a oportunidade de esquecer todo seu passado para começar de novo – o que o livra da culpa e do remorso.
Sem nome, sem passado e sem história, ele adota o nome Perramus (marca do casaco que usa) e acaba se colocando novamente na luta contra os tais Marechais. O tom soturno desse começo é intensificado pela figura dos algozes – que parecem vampiros cadavéricos pouco amistosos. O clima é amenizado pelos novos companheiros de Perramus, com quem ele tem uma química divertida que gera diálogos poderosos e inteligentes.
Os Marechais apresentam um aspecto cadavérico na HQ Perramus de Juan Sasturain e Alberto Breccia
Esse começo é muito cheio de simbolismo e sabemos que Sasturain estava escrevendo sobre um mal que seu próprio país estava passando (a ditadura militar argentina durou de 1976-1983). Eleições falsas, perseguições a pensadores e intelectuais, opressão do povo.. tudo está representado nessas páginas que usam a figura dos Marechais para personificar os algozes do mundo real de uma forma direta e clara.
Temos alguns capítulos brilhantes nesse início, como o chamado “A Guerra” que mostra as eleições “falsas” que são montadas pelos Marechais. Ainda que tenhamos outros capítulos igualmente poderosos, senti que como entretenimento a leitura nessas duas primeiras graphic novels deixa a desejar (vale lembrar que a edição nacional da Figura traz todo o material original).
A carga cultural é inegavelmente intensa e a genialidade da escrita e do traço estão na nossa frente mas a trama acaba sendo truncada e – em alguns momentos – até desconexa. O foco parece estar na mensagem e no simbolismo e isso funciona para nos fazer refletir mas não necessariamente para nos divertir. A sensação é que esse começo não se sustenta sem o entendimento do simbolismo proposto e do paralelo dele com os acontecimentos da época no mundo real.
O protagonista e seus companheiros se reúnem em quadro da HQ Perramus de Juan Sasturain e Alberto Breccia
A questão não é dizer se a leitura vale ou não a pena (porque vale muito!) mas dosar as expectativas do leitor. Essas duas primeiras histórias de Perramus são recheadas de referências e me parece nítido que isso deixou a trama mais truncada e menos acessível para os que não conhecem o período que está sendo abordado na HQ.
A sensação é que as coisas mudam bastante nas duas últimas graphic novels: “A Ilha do Guano” e “Dente por Dente”. Os símbolos e suas mensagens poderosas ainda estão aqui, mas parece que o foco na narrativa da HQ ganha os holofotes. A mistura de personagens reais com fictícios segue forte, mas a impressão é que a proposta funciona mesmo sem grande conhecimento prévio do leitor sobre eventos da época e mesmo sem o entendimento completo das referências citadas.
Em outras palavras: essas duas tramas entregam mais camadas e cabe ao leitor definir até onde ele vai “mergulhar” na proposta de Sasturain e Breccia – o ponto positivo (e diferente das aventuras anteriores) é que qualquer uma dessas camadas se sustenta e funciona muito bem!
A arte de Breccia impressiona na HQ Perramus escrita por Juan Sasturain
Em “A Ilha do Guano” vemos Perramus e seu grupo se envolverem nos problemas políticos de uma pequena ilha que está dividida entre dois regimes. O envolvimento do grupo é involuntário e aos poucos vamos entendendo mais dos problemas da ilha.
Perramus e seus companheiros são mais observadores do que protagonistas nesta trama – eles fazem algumas intervenções importantes, mas é aquele tipo de caso onde vemos a história se desenrolar independentemente dos seus protagonistas. A trama ainda é bem carregada no simbolismo, mas ele é mais acessível e funcional. Os diálogos seguem muito afiados e considero que o desenvolvimento dos “ditadores/vilões” está menos caricato do que a representação dos Marechais.
“Dente por Dente” é a última trama e confesso que é a minha favorita. A narrativa parece mais fluida e menos truncada e a trama tem uma proposta mais aventuresca que leva o grupo para diversos locais do mundo em busca dos dentes de Carlos Gardel (o mais famoso dos cantores de Tango da história).
Personagens históricos passeiam pelas páginas dessa aventura enquanto Perramus viaja o mundo atrás dos dentes para reconstruir o sorriso do cantor (a busca pela reconstrução é muito bem explicada!). Essa trama é, para mim, o exemplo perfeito de como entretenimento e mensagem podem coexistir dando opções de camada de leitura ao mesmo tempo que fornecem informações novas e relevantes que enriquecem a experiência.
Os Marechais ameaçam o protagonista e seu grupo na HQ Perramus de Juan Sasturain e Alberto Breccia
Perramus de Juan Sasturain e Alberto Breccia é uma HQ extremamente cativante e poderosa. Suas aventuras são extremamente inteligentes e carregam um simbolismo complexo que é capaz de fazer o leitor pensar e refletir sobre assuntos políticos e sociais de forma realmente profunda. A arte de Breccia dispensa comentários e a escrita de Sasturain é ácida e realmente reflexiva.
Se as primeiras aventuras pressupõe uma carga cultural e uma disposição grande do leitor para mergulhar nas referências propostas (tudo isso com um tom extremamente soturno), as duas últimas parecem ir em uma direção diferente.Além de abandonar parcialmente o clima soturno, a obra traz mais camadas de leitura – o que faz com que a narrativa funcione tanto como “uma aventura simples e divertida” ou como “uma aventura densa e cheia de críticas sociais”.
Perramus de Juan Sasturain e Alberto Breccia não é uma leitura que vai agradar a todos e nem que vai ser compreendida integralmente por todos (tenho certeza e convicção que ainda tenho muito a explorar e entender nessa obra) – infelizmente vivemos um momento onde isso não será admitido pela maioria e seguiremos de forma “vaga” dizendo que a leitura é essencial e indispensável.
A genialidade da dupla se torna mais acessível nas últimas duas histórias e é por conta delas que eu digo que vale sim, para a maioria dos leitores, se aventurar nesse universo rico, denso e extremamente complexo. Mesmo que você “boie” no começo, essas duas graphic novels finais vão te conectar aos personagens e fazer com que você tenha vontade de mergulhar mais profundamente nas aventuras iniciais.
Uma ótima leitura que nos dá um vislumbre cultural diferente e nos convida à reflexão.
Avaliação: Excelente!
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Créditos:
Texto: Lucas Souza
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
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