Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é autora de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada (1960), best-seller com mais de 100 mil exemplares vendidos no primeiro ano de lançamento, ultrapassando Gabriela, Cravo e Canela (1958) de Jorge Amado. A obra reúne os registros sobre o que ela viu e refletiu na favela do Canindé, localizada na várzea paulistana do Rio Tietê, entre 1955 e 1960. Ali, hoje fica o estádio do time da Portuguesa de futebol.
Se algo desse tipo soaria impactante nos dias atuais, imagine em uma época onde o próprio acesso a literatura e a alfabetização era algo elitizado. Uma mulher negra e favelada, para além de leitora, estava se colocando como escritora.
A história da publicação Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada é no mínimo curiosa. Audálio Dantas (1929-2018), uma lenda do jornalismo brasileiro, passou três dias na favela do Canindé com o objetivo de fazer uma reportagem para a Folha da Noite sobre a vida no local.
Eis que assiste uma mulher ameaçando homens que tomavam o espaço de crianças em um playground com a seguinte frase: “Vou botar o nome de vocês no meu livro!” Ao questioná-la sobre o tal livro, Dantas é convidado para sua casa e tem acesso a 20 cadernos, que reúnem poesias, contos, romances e diários. Repórter que era, são os relatos cotidianos presentes nos escritos de Carolina que chamam a atenção.
Oras, por que fazer uma reportagem sobre a vida naquela favela se Carolina já havia escrito algo tão verdadeiro e visceral? Em 9 de maio de 1958, a reportagem de Dantas era publicada na Folha da Noite, com título um tanto quanto sensacionalista: “O drama da favela escrito por uma favelada – Carolina Maria de Jesus faz um retrato sem retoque do mundo sórdido em que vive”.
Naquele momento, quando nem se discutia o tal “lugar de fala”, Dantas teve a sensibilidade de saber que a visão dela, que vivia o lugar, era única e muito rica, graças a seu talento em colocar tudo aquilo no papel. Pouco depois, Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, os escritos de Carolina editados por Dantas e outros jornalistas, saiu pela editora Livraria Francisco Alves. E Carolina ficou famosa.
Mas estamos falando de HQs, e Carolina (2018) é justamente a biografia em quadrinhos da escritora, lançada pela editora Veneta em 128 páginas, P&B, com roteiro de Sirlene Barbosa e arte de João Pinheiro.
Carolina criou três filhos sozinha na favela do Canindé
Qual é a trama de Carolina
Apesar de passarmos pela infância pobre de Carolina em Sacramento, Minas Gerais, onde aprendeu a ler, e pelo fim de sua vida em um pequeno sítio em Parelheiros, que comprou em busca de uma vida sossegada, a maior parte da HQ é focada no período de uma década em que ela viveu na favela do Canindé e produziu seus escritos.
É lá que a escritora morava com seus três filhos, João, José e Vera, quando catava papéis na cidade para vender e alimentar a família. A fome era companheira boa parte dos dias. Os clássicos literários e jornais, que ela encontrava no lixo, também.
O quadrinho, por tabela, retrata um pouco da cultura e história de São Paulo, onde há “beleza e feiura amasiadas sem cerimônia.” Os traços de Pinheiro delineiam isso muito bem ao mostrarem as ruas do centro velho. Na favela do Canindé, porém, as agruras são mais presentes.
A crueza aparente na obra de Carolina – que mostra a dificuldade de sobreviver com três filhos em uma favela suja com apenas uma torneira para todos os barracos, os problemas da bebida e a violência, pronunciada ou física, entre homem e mulher e entre os próprios moradores e, talvez o pior, a fome – está condensada na HQ.
Carolina vivia apenas com os filhos, pois dizia que “entre os homens e os livros, eu fico com os livros.” Sirlene e Pinheiro, inclusive, reproduzem bastante da personalidade que ajudou a tornar seus escritos tão viscerais.
E não pense que Carolina sofreu preconceito apenas quando entrou no circuito literário ou foi morar na casa de classe média em Santana, na zona norte de São Paulo. O fato de ela ser leitora ávida, ter cultura acima dos vizinhos de favela, já a colocava como estrangeiro em seu habitat.
Carolina e seus filhos conviveram com a fome que, segundo ela, tem cor, amarela
Lá ela sofria preconceito e ojeriza dos moradores que não a entendiam, a invejavam ou estavam enfurecidos por terem suas realidades colocadas na vitrine. A crueldade vinha dos próprios excluídos.
O encontro com Audálio Dantas, a saída da favela – enxotada pelos moradores –, o período em Santana, o breve encontro com Clarice Lispector e as dificuldades em repetir o sucesso do primeiro livro – ela tem diversas outras obras – também estão presentes na HQ.
Vale a pena ler?
Carolina é uma das escritoras mais reconhecidas de nosso país, não pela ortografia erudita, mas pela qualidade e visceralidade de seus textos, estilo único e ineditismo de uma mulher negra e favelada ter um lugar de destaque até então.
E essa qualidade parece se destacar em dois sentidos. Primeiro pois Carolina retratou a realidade dos excluídos de maneira muito próxima e verdadeira – tanto é que virou conteúdo jornalístico –, servindo-nos de base histórica, sociológica e antropológica de maneira ímpar.
Segundo porque, saída de onde saiu, ela fez tudo por sua própria competência e de maneira muito autoral, o que, até hoje, serve de inspiração a novos escritores, sobretudo aqueles que, de alguma forma, vêm de realidades marginalizadas. Carolina acabou sendo fundadora de um movimento literário em que o cidadão excluído é autor da própria história que protagoniza.
As altas vendas não impediram o racismo, mas ela sempre respondeu com personalidade
Vale um adendo. Ela não narrava apenas o cotidiano literal. Seus cadernos tinham poesias, poemas, crônicas, contos, roteiros, romances. É interessante pensar que, por meio das mãos de um jornalista, os diários foram passados para frente. Mas se fosse um dramaturgo fazendo algum tipo de laboratório a encontrá-la, por exemplo, o recorte inicial de seus escritos poderia ser outro.
Pela importância da biografada, por si só, a leitura é muito válida. Mas é necessário citar a competência do trabalho feito por Sirlene e Pinheiro. Ela, apesar de nos apresentar uma escrita acessível, mistura objetividade e profundidade em sua pesquisa, feita em estilo acadêmico, com citações no rodapé e tudo – pontua-se, Sirlene é mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem e doutora em Educação –.
Já Pinheiro tem uma arte que parece orgânica e crua, no melhor dos sentidos, de modo que muito da verdade que é passada pela HQ aparece pelos traços dele. A leitura, portanto, é rápida, mas densa por seu conteúdo condensado.
Vale pontuar que o posfácio é ótimo, principalmente para quem nunca teve acesso à história de Carolina. Traz detalhes da vida e obra da autora que provavelmente não couberam no quadrinho.
Carolina serve tanto aos que conhecem a literatura “carolinesca” quanto aos que querem ter um primeiro contato com a escritora. É um drama da vida real que podemos enquadrar no JHQ, em vista de que a biografia é um gênero jornalístico, aqui feita em formato de quadrinhos com intensa pesquisa para se aproximar dos fatos.
Nos faz refletir sobre o poder e a libertação que o estudo e a cultura podem dar. E, infelizmente, ainda assim, para alguns isso não é suficiente para a ascensão. Afinal, mesmo sendo autora de best-seller e relativamente culta, para os vizinhos de Santana, Carolina nunca deixou de ser a indesejável favelada que invadiu um bairro que não era dela. Por que não era?
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Créditos:
Texto: David Horeglad – @hq_ano1
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse
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