Ultimato do Bacon

As três fugas de Hannah Arendt: uma tirania da verdade (2021) – O Ultimato

Em 30 de Set de 2021 5 minutos de leitura
As três fugas de Hannah Arendt uma tirania da verdade (1)

Conheça a biografia em quadrinhos de uma das maiores pensadoras do século XX em: As três fugas de Hannah Arendt

À primeira vista, falar que a busca pela verdade nem sempre é libertadora pode soar esquisito. Mas essa é uma das muitas conclusões que podemos ter com a leitura de As três fugas de Hannah Arendt: uma tirania da verdade (2021), a biografia em quadrinhos da mulher que ajudou a definir o termo “totalitarismo” e foi uma das mais importantes pensadoras do século XX.

A obra é de Ken Krimstein, que teve publicações nas revistas The New Yorker, Punch e no Wall Street Jornal, e é professor na De Paul University e na School of the Art Institute of Chicago.

No Brasil, As três fugas de Hannah Arendt: uma tirania da verdade saiu neste ano pela editora WMF Martins Fontes. Possui 234 páginas em preto, branco e verde – a única tinta colorida usada pelo autor –. O livro foi publicado originalmente em 2018, em inglês.

No quadrinho, Krimstein mostra um lado mais íntimo de Hannah Arendt, seus relacionamentos e introspecções. Mas da mesma forma que é impossível separar a música da vida pessoal em Coltrane (2016), em nenhum momento as ideias da filósofa política são postas de lado.

Um dos pontos altos da narrativa são os encontros com figuras ilustres no Café Romanisches, em Berlim. Lá, Arendt discutia e se divertia com Fritz Lang, Marc Chagal e Bertolt Brecht entre tantos outros.

Também foi onde Albert Einstein a perguntou sobre o sentido da vida, no que ela respondeu: “o strudel do Romanisches.” Tudo é contado em primeira pessoa, permitindo uma imersão incrível.

Qual a trama de As três fugas de Hannah Arendt: uma tirania da verdade

Tirando o fato de ser uma história em quadrinhos, a biografia de Hannah Arendt tem um formato bem tradicional. Conta a vida por completo da biografada, da juventude à morte, em ordem cronológica. O que, no caso dela, não deixa a leitura menos complexa.

As três fugas de Hannah Arendt uma tirania da verdade (1)

Arendt enfrentou problemas como o antissemitismo desde criança

As três fugas de Hannah Arendt: uma tirania da verdade é dividida em cinco capítulos. No primeiro, conhecemos a infância no leste da Prússia, quando Hannah já estava com a cabeça em Immanuel Kant e, infelizmente, sofria com um pai em estado avançado da sífilis. Outro problema era o crescimento do antissemitismo na região. “Se você é atacada como judia, tem que se defender como judia”, diz Martha, a mãe.

Aos 14 anos, Arent tinha lido todos os livros de Kant e seguia buscando os “porquês”. É com as tragédias de Sófocles que ela aprende a ler em grego. O capítulo ainda é dedicado ao amadurecimento de Hannah até a vida adulta, o primeiro romance na adolescência e a mais polêmica paixão: o filósofo Martin Heidegger, que depois ficou conhecido por apoiar o nazismo.

Por conta da fama de Heidegger com os melhores alunos do ensino médio alemão, Hannah se matricula em todas as matérias dele na Universidade de Marburgo. Entre os colegas de sala, Hans Jonas, Leo Strauss, Herbert Marcuse, Karl Lowith e Emmanuel Levinas. Grandes pensadores e filósofos de origem judaica.

Mas apesar do relacionamento com Heidegger, casado com uma cristã, a filósofa judia alemã acaba formando uma união estável com Günther Stern, primo do que seria um de seus melhores amigos no futuro: Walter Benjamin, ensaísta ligado à Escola de Frankfurt.

É então que começam três capítulos chave. Um para cada fuga de Hannah Arendt. A primeira de Berlim para Paris, em 1933, após ela ser presa pela Gestapo por ajudar um amigo a fazer pesquisas para o 15º Congresso Sionista de Praga.

A segunda foi depois de ser capturada no Vélodrome D’Hiver, próximo da Torre Eiffel, quando a Alemanha invadiu a França. Lá, chegou a ser transportada de trem para o campo de concentração em Gurs, do qual conseguiu fugir para Lisboa em 1940.

As três fugas de Hannah Arendt uma tirania da verdade (1)

Blücher e Martha, apesar das diferenças, tiveram muita participação na vida de Hannah

Por fim, a fuga de Portugal – última via de saída da Europa – para Nova York. Hannah começa trabalhando como au pair em Massachusetts até entrar no meio acadêmico, inicialmente na Faculdade do Brooklyn.

O capítulo mostra a ascensão de Hannah Arendt nos Estados Unidos, a primeira grande publicação – As Origens do Totalitarismo (1951) – a perda da mãe e a polêmica do artigo Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1963), feito para a The New Yorker após cobertura do julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann em Israel.

No último capítulo, Krimstein se dedicou a contar um pouco mais das teorias e dos pensamentos de Hannah Arendt, naquele momento já bem delineados. O significado da verdade – que para ela, grosso modo, seria a soma de todas as verdades –, o totalitarismo e a democracia, a pluralidade e o “transpensar”. Este último, criação de Arendt, algo como levantar mais questões ao buscar a resposta de algo, pensar de forma criativa, além das técnicas filosóficas.

Outras particularidades da história valem ser ressaltadas. O relacionamento com Heinrich Blücher, o segundo marido, é muito trabalhado na HQ. Mas ganha destaque a presença constante, mesmo quando longe, de Heidegger. Foi das reflexões sobre as conversas com ele –e de forma bem opositora – que Hannah descobriu sua definição da verdade.

O amigo Walter Benjamin também foi essencial. Além do impacto de seu suicídio, um dos golpes mais duros para Arendt, Benjamin ajudou em algumas conclusões. Uma delas é a de que as esferas pública e privada – aqui, no sentido das relações familiares e de sobrevivência –, na medida em que se misturam, tornam-se berço para o totalitarismo.

As três fugas de Hannah Arendt uma tirania da verdade (1)

Os cenários aparecem pouco, mas de forma interessante na obra

Vale a pena ler?

Pode parecer polêmico, mas cheguei à conclusão de que este não é um quadrinho para quem curte quadrinhos. Explico.

A arte de Krimstein parece um grande esboço, embora em alguns momentos com lampejos de sofisticação, como em cenários bem reconhecíveis com relativamente poucos traços. Isso acontece quando o ilustrador quer destacar o clima arquitetônico e de movimentação das cidades. Nova York, Berlim…

A impressão que passa é a de que Krimstein deu muito mais atenção para o trabalho de pesquisa e conteúdo – que no caso de Hannah Arendt é fundamental e foi muito bem executado – mas deixou em segundo plano a arte.

Não deixa de ser um estilo que seleciona prioridades. No entanto, provavelmente não agradará os fãs tradicionais de quadrinhos, que prezam por traços mais trabalhados e esteticamente mais palatáveis.

Por vezes, a HQ lembra outras formas de publicação, com toques de livro ilustrado e até de enciclopédia ou revista acadêmica. Tendo em vista que Hannah Arendt leu tanto e conviveu com tantas figuras ilustres, Krimstein fez questão de explicar quem foi cada uma delas em dezenas e dezenas de notas de rodapé.

Para quem gosta desses detalhes, pode ser um prato cheio. Saber quem participava de cafés filosóficos com Arendt ou mesmo descobrir, entre tantas personalidades celebres, algumas que se conhece pouco, é muito estimulante. Vai aumentando consideravelmente nossa pilha de leitura e pesquisa. Já para quem abomina recordatórios longos e artifícios semelhantes, não é nada atrativo.

As três fugas de Hannah Arendt uma tirania da verdade (1)

Krimstein consegue condensar pensamentos complexos em poucas palavras

Se me pedirem uma sugestão de leitura em quadrinhos de forma geral, com certeza As três fugas de Hannah Arendt: uma tirania da verdade não estará entre os primeiros nomes. Contudo, se eu souber previamente do gosto de alguém pela biografada ou por temas análogos a ela, como o totalitarismo, o nazismo, a filosofia e a política, a dica será certeira.

A HQ serve tanto para quem quer ter um primeiro contato com Hannah Arendt quanto para quem conhece suas obras e pretende se aprofundar um pouco mais na vida e na biografia da pensadora.

É necessário dizer que três grandes méritos de Krimstein foram a costura das vivências e relações de Arendt com a formação de seu pensar, a exposição do íntimo sem soar fofoqueiro ou sensacionalista, e condensar teorias tão complexas em poucas páginas de arte sequencial que, aliás, é bem acessível. Ele faz tudo com bom humor e leveza, em linguagem coloquial.

Apesar dos temas pesados, dos momentos de dor, dúvida e sofrimento que o quadrinho apresenta, a força e persistência, a crença na democracia e na pluralidade e a coragem de Hannah Arendt fazem desta obra inspiradora.

Gostou do texto? Leia outras matérias do David Horeglad (HQ Ano 1) para o UB!

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Ultimato do Bacon

Avaliação: Ótimo!

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As três fugas de Hannah Arendt uma tirania da verdade (1)


Créditos:
Texto: David Horeglad – @hq_ano1
Imagens: Reprodução
Edição: Diego Brisse 
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