Ultimato do Bacon

Matrix Resurrections – O Ultimato

Em 22 de Dez de 2021 8 minutos de leitura
matrix resurrections wall

Filme de Lana Wachowski que estreia nesta quarta nos cinemas é uma celebração do universo criado em 1999, ressuscitando uma das mais icônicas franquias do cinema

Matrix Resurrections, também conhecido como Matrix 4 chegou ao conhecimento do público sem muito alarde e sem atrair muito a atenção de qualquer um que seja – mesmo dos fãs mais veementes.

Afinal de contas, a famosa “trilogia de um filme só”, Matrix, encerrou sua história de maneira satisfatória e inquestionável. No entanto, a chegada do trailer de Matrix Resurrections mudou um pouco o clima geral do público e, chegada a hora de conferir o longa de Lana Wachowski, fica a dúvida: era necessário mesmo este capítulo?

Índice

Matrix Resurrections – histórico

Antes de existir o MCU e o universo compartilhado de filmes, séries, livros, games e HQs de Star Wars, existiu o universo de Matrix, em que as cut scenes do jogo Enter The Matrix revelavam a história dos coadjuvantes de Matrix Reloaded (2003) – Niobe, Ghost e Sparks – e a relação mais profunda que esses personagens tinham com o elenco principal; ou ainda, o gameplay fazia com que o jogador recuperasse em uma agência postal uma mensagem entregue pela tripulação da animação O Último vôo da Osíris, presente na antologia Animatrix (2003).

Isso sem falar na origem de Morpheus, contada em uma das HQs de Matrix Comics.

A franquia Matrix pode não ter inventado a pluralidade de plataformas ou a difusão multimídia de seus produtos – veja Doctor Who, por exemplo – mas fez isso de maneira brilhante.

Só que, ainda antes do universo Matrix, existiu o filme original de 1999. Sua importância naquele período do tempo e da tecnologia do cinema foi tão único que nada do que foi feito depois importou muito.

A expectativa do público depois do bullet time era tão alta que nenhum dos efeitos do “código Matrix” em 3D, nem a cena da explosão do caminhão ou a “burly brawl” nas sequências foram capazes de apaziguar os ânimos de jovens sedentos por todo o deslumbramento causado pelo primeiro filme.

E não foi pequeno o esforço dos então Wachowskis em alcançar a mesma magia original. Como mencionei, além de tentativas tecnológicas e narrativas nos filmes, houveram jogos de computador e videogames, websites especiais com códigos e puzzles, animações, quadrinhos e muito mais.

Quando The Matrix Online foi lançado em 2005, a história encerrada em Matrix Revolutions (2003) já havia satisfeito / decepcionado fãs no mundo inteiro e poucos acompanharam a morte de Morpheus e seus acontecimentos posteriores.

Após a finalização da trilogia nos cinemas, não era mais possível satisfazer completamente nenhum espectador sequer. E todos sabiam disso. O fim era inevitável, uma vez que pequenas perguntas deixadas em aberto no fim do primeiro filme já haviam sido respondidas e o fator novidade, obviamente, não superaria o choque original.

Em 2021, Matrix Resurrections chega aos cinemas para um público que se divide entre fãs que já encontraram sua forma de apreciar este universo – gostando ou ignorando tudo o que foi feito além do primeiro longa em maior ou menor grau – e espectadores que não fazem ideia do que foi o fenômeno do primeiro longa.

E Lana Wachowski consegue contornar expectativas de ambos os lados justamente por não tentar repetir o feito de 1999, abraçando a impossibilidade do fato da maneira mais honesta possível.

Matrix Resurrections – trama

Matrix Resurrections explora os eventos ocorridos após a suposta morte e assimilação de Neo pelas máquinas em 01, a cidade principal das IAs no mundo real. Assim como no primeiro longa, o filme começa sem nenhuma explicação, com eventos em curso e sendo revelados em primeira mão ao espectador.

A história é cativante e prende a atenção do público de maneira brilhante e eu poderia seguir o caminho normal, avaliando forças e fraquezas do filme como algo singular e individual.

No entanto, como um colega bem apontou, Matrix Resurrections não é o tipo de evento, produto ou acontecimento que pode ser encarado somente como um filme.

Matrix Resurrections é mais do que isso. É a ressurreição não somente de personagens liquidados ao longo da franquia, mas também da própria franquia, suas discussões e filosofias.

É a ressurreição do espírito independente com que os Wachowski iniciaram o sonho de trazer para as telonas suas referências da cultura pop, traduzido para um mundo 22 anos mais velho.

Para isso, Lana Wachowski abusa da auto-referência de maneira genial,

  • calcando o novo filme estruturalmente em cima do original e remontando tal estrutura de uma maneira que funcione de forma inédita no novo longa;
  • compondo o elenco e equipe com atores e profissionais “da família”, dando um clima de produção indie a um blockbuster multimilionário;
  • e quebrando expectativas do público com subversões do universo Matrix, atravessando a famosa quarta parede sem quebrá-la, mergulhando metaforicamente através da tela do cinema e trazendo o espectador para a Matrix, ou melhor, para Hollywood e suas exigências contratuais.

Sim, pode parecer que eu tenha me desviado da trama… mas acredite, me desviei menos do que gostaria.

Voltando à história do filme, basta dizer que Neo está novamente preso à Matrix… e Morpheus pretende resgatá-lo – afinal, ele é o Escolhido. Tudo está diferente… uma nova versão da Matrix, novas formas de transmissão do sinal pirata e novos arranjos sociais no mundo real.

No entanto, tudo é familiar e recorrente, com os 22 anos de legado e cânone exalando de cada frame de Matrix Resurrections. De fato, uma obra que não pode e não deve ser criticada de maneira isolada.

Matrix Resurrections – ecos

Um dos pontos fortes de Matrix Resurrections é a habilidade de Lana Wachowski em estruturar o novo longa em cima do filme original sem deixá-lo enfadonho, repetitivo ou óbvio.

Quando Thomas Anderson joga suas pílulas na pia do banheiro da mesma forma que as carcaças das balas de sua metralhadora caíam do helicóptero que usou para resgatar Morpheus em 1999 e o pote vazio gira com o mesmo som do tambor vazio e fumegante da arma, é possível que muita gente não perceba a intenção.

Mas outras cenas serão óbvias demais para passarem despercebidas, como por exemplo Morpheus adentrando o “saguão” com exatamente os mesmos movimentos e armas que Neo utilizou originalmente.

A quantidade de referências são muitas para listar aqui, da tatuagem de coelho de DuJour e Bugs às falas utilizadas em diversos momentos do filme.

Porém, uma ressalva: Lana misturou as coisas e, embora algumas cenas sejam praticamente espelhadas, outras renovam o contexto da fala ou ação e outras ainda, subvertem a intenção original, acrescentando algo inusitado ou até mesmo engraçado ao plot original.

Será que Lana sabe que eu e o Doo – um dos meus melhores amigos até hoje – ficávamos debatendo Matrix e citando as falas do filme na época da faculdade? Certamente sim.

Primeiro porque “eu e o Doo” éramos só mais dois caras entre milhões que faziam isso. E segundo porque só sabendo que legiões de fãs conheciam e conhecem as falas e cenas da obra original de maneira irretocável é que alguém conceberia as cenas que estão presentes em Matrix Resurrections.

E só sabendo desse nível de “devoção” alguém usaria tais cenas não somente para reverenciar seu legado, como também para debochar dele.

Matrix Resurrections – família

Uma das grandes qualidades de Matrix Resurrections é a sensação de que você está vendo um filme “familiar” ou indie, principalmente se você conhece minimamente a história dos envolvidos no projeto.

  • Seja porque Lana Wachowski e o casting do longa escolheu muitos dos atores e atrizers de Sense 8 para diversos papeis importantes na produção;
  • ou pela volta de figura do elenco principal da trilogia original como o próprio Keanu Reeves, Carrie Anne-Moss, Jada Pinkett Smith e Lambert Wilson;
  • ou ainda pela ponta, como marido de Tiffany-Trinity, de Chad Stahelski (diretor de segunda unidade nos filmes originais que hoje atua como diretor e criador da franquia John Wick, na qual ele profusamente insere menções e referências a Matrix – leia a crítica do primeiro, segundo filmes aqui, do terceiro aqui e aqui, além desta matéria especial aqui).

Isso agrega ao filme algo quase íntimo que os fãs dividem com o núcleo criativo da produção, quase que “contra” o estúdio, especialmente quando tal ideia é reforçada no texto da trama.

Em linhas gerais, durante a história, ainda dentro da Matrix, Neo trabalha para uma empresa de games que desenvolveu a trilogia de mega sucesso “The Matrix”. Subsidiária da Warner Bros., a empresa recebe um ultimato de sua detentora, deixando claro que uma quarta versão do jogo irá acontecer, com ou sem a presença de seu idealizador, Thomas Anderson. Será que a situação para Lana foi similar?

Matrix Resurrections – cultura pop

Um dos pontos que chamou a atenção do público mais atento no primeiro Matrix foi a presença de elementos absorvidos, reinterpretados e reutilizados de diversas fontes, especialmente da cultura pop como um todo. De Kierkegaard a Akira (1988), passando por William Gibson e a saga do sprawl, com uma atmosfera neo noir reciclada das aventuras de Philip Marlowe e a óbvia relação com Lewis Carroll, a primeira instância da franquia acerta em muito em preencher cada cena com inspirações e referências a obras que tangenciam seu tema.

De maneira análoga, Matrix Resurrections acerta na mesma medida, repetindo a inserção de menções a Alice através do espelho, trocadilhos inteligentes no nome de lugares como a empresa Deus Machina, o café Simulatte, o nome de novos personagens como a própria Bugs ou o hovercraft Mnemosine, a música do Jefferson Airplane White Rabitt, perfeita tanto por fazer analogia aos personagens de Lewis Carroll quanto a relacionar a ingestão de pílulas ao consumo de entorpecentes psicotrópicos e muito mais.

Se Matrix Resurrections é bom em sua linha principal, na entrelinha é, mais uma vez, espetacular.

Um adendo: Neil Patrick Harris é simplesmente fenomenal e toda a relação de Matrix com questões psicológicas. Em especial a depressão e o suicídio – que sempre foram colocadas de forma branda e relativamente velada – vide Era Uma vez um Garoto de Animatrix. Aqui estão escancaradas, aguardando somente alguém corajoso o suficiente para destrinchar tais metáforas.

Matrix Resurrections – Trinity

Os Wachowski, no final dos anos 90, já faziam algo que hoje em dia é pauta em muitas produções, seja de maneira natural ou incentivada, enaltecida ou criticada: a preocupação com o protagonismo feminino em produções hollywoodianas.

Embora Neo esteja no centro da ação, existe um subtexto incrível para Trinity na trilogia original que deixa claro que o herói é pouco mais que um garoto assustado sem a presença da protagonista.

Neo: What are you doing?

Trinity: Going with you.

Neo: No you’re not.

Trinity: … No? Let me tell you what I believe. I believe Morpheus means more to me than he does to you; I believe if you are really serious about saving him, you are going to need my help; and, since I am the ranking officer on this ship, if you don’t like it… I believe you can go to hell- because you aren’t going anywhere else. Tank, load us up.

Neo: O que você está fazendo?

Trinity: Indo com você.

Neo: Não, você não vai.

Trinity: … Não? Deixa eu te contar no que eu acredito. Eu acredito que Morpheus significa mais pra mim do que pra vocês; eu acredito que, se você está falando sério em salvá-lo, você vai precisar da minha ajuda; e, uma vez que eu sou a oficial de patente mais alta nesta nave, se você não gosta disso… eu acredito que você pode ir pro inferno – porque você não vai pra nenhum outro lugar. Tank, carregue a gente.

Bom, eu poderia explicar vírgula por vírgula o que Lana Wachowski faz com Tiffany-Trinity neste longa.

Mas acho que eu daria spoilers gigantescos por aqui e alguns leitores talvez ficassem chateados comigo. Acho que basta dizer que finalmente, de uma vez por todas, Trinity explica com seus atos porque ela está na franquia.

Matrix Resurrections – conclusão

Matrix Resurrections pode ser o novo começo para uma nova fornada de produtos dentro do universo Matrix ou pode ser um grande fracasso de bilheteria, uma vez que o mundo de 2021 parece mais interessado em super-heróis do que nos heróis de ficção científica pseudo filosófica.

Pode ser o final aclamado para uma bela franquia ou só mais um capítulo semi-ignorado de uma saga de um filme só.

A verdade é que dentre tantas possibilidades de caminhos para uma continuação que, ao que tudo indica, aconteceria de qualquer maneira por vontade do estúdio, a diretora trilhou um caminho brilhante e corajoso, sem reprisar uma fórmula de maneira automática, tentando enaltecer o caminho trilhado ao mesmo tempo em que ousava inovar com cenas de tempo invertido ou refinando efeitos que em 1999 não conseguiriam ser realizados.

Que o brilho original do longa de 99 jamais será novamente alcançado é um fato. Aceitar tal fato e reverencia-lo é sinal de maturidade, inteligência e aptidão da diretora para seguir realizando filmes, animações e demais produtos deste universo.

Bem-vindos ao deserto do real.

Avaliação: Excelente!
matrix resurrections poster

Créditos:

Texto e Edição: Alexandre Baptista

Imagens: Reprodução



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