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Calafrio e Mestres do Terror (1981-2021) – Matéria Especial

Em 2 de Mar de 2021 9 minutos de leitura

A editora Ink&Blood Comics relançou em novembro de 2015 os títulos Calafrio e Mestres do Terror, respectivamente, a partir dos números 53 e 63. Por que a editora começou com essa numeração avançada? O leitor agora vai conhecer a história por trás das únicas revistas em quadrinhos de terror longevas genuinamente nacionais a circularem pelas bancas.

Índice

Calafrio e Mestres do Terror – Gênese da Editora D-Arte

O gênero horror nos EUA está fortemente ligado à retomada do mercado de quadrinhos no pós-Guerra. No Brasil o gênero foi bem aceito já na década de 1950: o sucesso e a demanda foram tais que as editoras nacionais estimularam a produção de quadrinhos nacionais, pois o material importado era insuficiente e, após 1954 com a instalação do Código de Ética nos EUA, inexistente. O mercado de revistas em quadrinhos era tão forte nessa época que as distribuidoras já adiantavam metade da tiragem aos editores antes do material ser posto em bancas.

O estúdio D-Arte tem origem em 1966 quando os artistas vindos da Argentina Rodolfo Zalla (argentino) e Eugênio Colonnese (ítalo-brasileiro) se radicaram no Brasil, abrindo o estúdio para a produção de HQs diversas (entre outros, horror) para editoras paulistanas como a GEP, Outubro/Taika e Jotaesse. A produção do estúdio era intensa e os dois artistas criavam cerca de 80 páginas mensais, com picos próximos a 300 páginas, ganhando muito dinheiro com essa produtividade.

Duas intervenções do destino contribuíram para o encerramento da produção de quadrinhos do estúdio e o novo rumo que a carreira de Rodolfo Zalla iria tomar:

  • A instabilidade do mercado editorial nacional começou a apertar a existência das pequenas editoras de revistas do gênero;
  • O grande amigo de Zalla, Reinaldo de Oliveira – certamente um dos mais sérios editores e profissionais do mercado impresso brasileiro -, o apresentou a Paulo Marte, dono do Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas (IBEP), com quem Zalla foi trabalhar como ilustrador de livros.

Zalla não parou de produzir quadrinhos, mesmo trabalhando no IBEP. A partir de 1972 passou a trabalhar para a editora Abril onde produziu HQs de Zorro, personagens da Hanna-Barbera e, por último, He-Man.

A editora carioca Vecchi, na virada das décadas de 1970/80, publicava a tradicional revista de quadrinhos de horror Spektro e mais alguns títulos – que no começo também contavam com material importado da editora americana Charlton Comics -, Zalla resolveu ir até o Rio de Janeiro oferecer suas HQs ao editor da publicação, Otacílio “Ota” Barros. Paulo Marte deu a ideia a Zalla para abrir sua própria editora e imprimir as revistas na gráfica do IBEP.

Capa da Revista Spektro #2 da editora Vecchi em 1978.

Assim, em 1981 Rodolfo Zalla funda a editora D-Arte e lança em dezembro do mesmo ano, duas revistas mensais, a Calafrio e o faroeste Johnny Pecos, esta última em cores.

Zalla foi surpreendido na mesma época, quando Miguel Penteado da editora GEP decidiu se aposentar e vender a editora, lhe oferecendo todo o estoque de originais de HQs que contava com muito material produzido pela própria equipe de Zalla no estúdio D-Arte.

Calafrio e Mestres do Terror – Os Títulos

Calafrio com suas HQs curtas de terror foi um sucesso já no lançamento. Johnny Pecos, com toda sua sofisticação gráfica ficou aquém, durando apenas até a quarta edição das dez que já estavam praticamente produzidas.

O faroeste da D-Arte, encerrado na quarta edição – capa da #2 de Johnny Pecos.

No lugar da revista cancelada foi lançada Mestres do Terror com a proposta de publicação de HQs com personagens consagrados – como Drácula na versão de Zalla, Lobisomem de Gedeone e Rodval Matias, Frankenstein, Múmia, e muitos outros personagens fantásticos ou folclóricos criados ou adaptados pela equipe de artistas.

Calafrio e Mestres do Terror 1

As capas de Calafrio e Mestres do Terror em suas primeiras edições, ambas de 1981.

Os títulos foram lançados como mensais, porém as sucessivas crises econômicas e as dificuldades de distribuição forçaram o editor a torná-las trimestrais e na maior parte de sua existência estiveram sem periodicidade definida. Ambas as revistas tinham inicialmente 52 páginas, com o miolo preto e branco em papel jornal. As capas, certamente as mais belas de toda a História dos quadrinhos nacionais dentro de uma coleção, eram em papel cartão e mais tarde plastificadas.

As dificuldades financeiras forçaram sempre a editora a rever o número de páginas. Mestres do Terror, com maior apelo devido aos personagens, menos páginas na maior parte do tempo durante a publicação e a já comentada esporacidade de lançamentos, ultrapassou a numeração de Calafrio em menos de três anos. As duas revistas foram editadas até 1992.

Ainda houve o lançamento de títulos especiais na forma de almanaques com mais páginas e capa plastificada. Calafrio Especial teve cinco edições e Mestres do Terror Especial, quatro. Em 1992 a editora ainda publicou o álbum trilingue A Arte de Rodolfo Zalla, como material promocional do artista e seus quadrinhos para o Festival de Lucca no mesmo ano.

Calafrio e Mestres do Terror – Artistas e Atrações

As páginas das revistas de horror da D-Arte publicaram não somente os mais brilhantes profissionais, como também uma galeria de personagens interessantes e dois grandes destaques editoriais sem precedentes nos quadrinhos brasileiros. A seção de correio Mala Direta de Reinaldo de Oliveira, as matérias e a coluna Quadrinhos pelo Mundo redigidas por Luiz Antônio Sampaio eram fortes atrativos às revistas e que muitos dos leitores liam antes das HQs, desobedecendo a ordem das páginas.

Reinaldo de Oliveira (segundo Zalla: “- Homem bravo, mas muito boa pessoa!”) respondia rispidamente as críticas, comentários e sugestões dos leitores; também era seriamente crítico em relação aos trabalhos e desenhos enviados pelos mesmos. As cartas muitas vezes eram abreviadas e cortadas, mas a resposta na seção contemplava o texto omitido.

Zalla e Reinaldo liam e respondiam todas as cartas e nas páginas os editores não descartavam correspondências que criticassem as revistas, a editora, ou a postura editorial. Exemplo de um grande momento foi a discussão com Franco de Rosa na Mala Direta da edição #13 de Calafrio, onde o leitor (artista e editor também) ataca sarcasticamente Reinaldo de Oliveira e Álvaro de Moya.

Nas seções de correspondência, os leitores ainda anunciavam revistas para compra e venda, e os fanzines enviados eram divulgados.

Luiz Antônio Sampaio morava em Campinas e Zalla o contatou para conhecer seu vasto acervo. O pesquisador produziu as melhores e mais abrangentes matérias até hoje publicadas sobre quadrinhos em gibis no Brasil. Seus textos eram excelentes e demonstrava um conhecimento ímpar da qualidade artística, histórico, bastidores de obras, personagens e artistas. Dificilmente a abrangência de Sampaio será superada por um só indivíduo. O autor ainda assinava a coluna Quadrinhos pelo Mundo que trazia notícias da indústria das HQs. Numa época que ainda não havia a internet, era um grande esforço.

Os artistas que publicaram nas revistas da D-Arte formavam um time bem entrosado e tão interessantes quanto suas criações: Rodval Matias, reconhecido astro com sua série Lobisomem, deixou de colaborar por questões financeiras; Mozart Couto, jovem talento recém estreado na Grafipar, passou a publicar suas HQs fantásticas com um estilo refinado que lembrava o europeu. Joe Bennett, o paraense hoje popularíssimo da DC e Marvel, assinando como Bene Nascimento, em HQ que também estreou o escritor multi-regional Gian Danton. Além deles, Franco de Rosa, Seabra e outros ali estiveram.

Grandes artistas já conceituados no mercado também estavam nas páginas das revistas, como o luso-brasileiro Jayme Cortez que publicou poucas e impactantes vezes com seu traço inigualável; Eugênio Colonnese não era nenhuma surpresa graças à sua longa parceria com Zalla e trazia seus personagens Mirza e Morto do Pântano; Rubens Cordeiro, da equipe de Colonnese esteve sempre presente nas revistas. Dois dos mais venerados artistas nacionais, Júlio Shimamoto e o incomparável Flávio Colin, fizeram contribuições perfeitas. O próprio Rodolfo Zalla foi seu maior colaborador, quando as finanças apertaram, além de todo trabalho de editoração, publicando em maioria HQs de sua autoria.

Se nos desenhos a equipe já era inigualável, nos roteiros a constelação de talentos era ainda mais impressionante, com a folclorista Maria “Cida” Godoy usando seus conhecimentos para tecer ótimas tramas. Um destaque era Luis Meri: um mistério até para seus colegas, era tido como “meio maluco” por Colonnese. Provavelmente era argentino, se vestia sempre de negro e um dia simplesmente sumiu e não souberam mais dele. Gedeone Malagola foi outro medalhão a escrever roteiros para as revistas. O roteirista de Zé do Caixão, R. F. Lucchetti, também escreveu muitas HQs. Além deles, Ataide Braz, Antônio Rodrigues (que também virou editor da Mestres do Terror) e o desenhista argentino e parceiro de longa data, Osvaldo Talo, colaboraram com roteiros.

Na revisão de textos e adaptações trabalharam Rivaldo Ribeiro, Reinaldo de Oliveira e Sidemar de Castro. Sidemar possivelmente o mais ilustrado de todos, grande parceiro de Zalla, colabora até hoje na nova fase das revistas. Brilhante roteirista de cinema, livros e quadrinhos, está para os quadrinhos nacionais como Chico Buarque para a música. Muitos outros desenhistas e roteiristas estiveram nas páginas de Calafrio e Mestres do Terror e boa parte dos trabalhos eram dos mesmos artistas já comentados, utilizando pseudônimos. Exemplos dos pseudônimos de Zalla: Jorge Sinelli, Jota Laerte, …

A editora ainda estimulou muitos leitores a enviarem seus roteiros (que na maior parte das vezes não passavam pela crítica rigorosa de Reinaldo de Oliveira) para serem desenhados pelo time de astros, depois de revisados e adaptados pela equipe da editora. Um bom exemplo são os irmãos Ivan e Rubens Lima que hoje colaboram com as revistas.

Calafrio e Mestres do Terror – Volta à Vida

Após o cancelamento em 1993 os fãs ficaram órfãos das duas séries nacionais. Em agosto de 2011, Rodolfo Zalla em parceria com a editora Cluq do jornalista Wagner Augusto (que também foi colunista da revista na fase D-Arte), relançou Calafrio Edição de Colecionador a partir do número 53.

O relançamento ocorreu em formato de luxo, capa de alta gramatura, formato maior (magazine), miolo em papel off-set e 52 páginas ao alto preço de R$ 30,00. De periodicidade trimestral, esta nova versão da revista iniciou com uma tiragem de apenas 300 edições e tinha distribuição exclusiva da loja especializada Comix, de São Paulo.

Calafrio Edição de Colecionador #54, publicada pelo Cluq em 2011.

Na edição 61 de dezembro de 2013 a revista (que já custava então R$ 35,00) passou a ter 84 páginas e custar R$ 45,00. A partir daí a editora Cluq já não participava mais da publicação. O aumento de páginas proporcionou ao editor encartar um suplemento intitulado Mestres do Terror na revista e a tiragem passou a apenas 150 edições.

Essa fase Edição de Colecionador da Calafrio durou até o número 64 e foi encerrada em dezembro de 2014.

Calafrio e Mestres do Terror – Fase Ink&Blood Comics

A editora Ink&Blood, do editor e cartunista pontagrossense Fábio Chibilski adquiriu os direitos das duas revistas da D-Arte, além de uma série de páginas em negociação com o mestre Rodolfo Zalla. A viabilização do projeto foi realizada através do convite de Fábio a seu leitor Daniel Saks, que fez um primeiro contato de fã com Rodolfo Zalla no dia 11/07/2015. Num segundo contato de Daniel com Zalla, Fábio formulou a aquisição dos títulos com o mestre, que foi assinada no início de outubro.

Na ideia original, Daniel seria o responsável pela aquisição de páginas de quadrinhos do estúdio D-Arte, compra de material para impressão e a redação das revistas. Fábio imprimiria as revistas em casa e adquiriria as páginas de quadrinhos com artistas mais novos, alguns dos quais já colaboravam com a editora. O lançamento simultâneo oficial das revistas ocorreu em 26/11/2015 em evento na Gibiteca de Curitiba.

Sobre a numeração, na negociação com Zalla foram discutidas três opções: reiniciar cada série a partir do número 1; partir de onde as séries pararam considerando todas as publicações (Calafrio a partir do número 65 e Mestres do Terror no número 63); ou ignorar a numeração de Calafrio da fase Edição de Colecionador e reiniciar o título do número 53. Por sugestão e maior gosto de Zalla, que justificou que muito poucos leitores compraram as revistas da fase Edição de Colecionador, foi decidido pela última opção.

Calafrio #53 e Mestres do Terror #63 – a retomada em nova casa em 2015.

A nova casa se preocupou desde o início com a publicação de material inédito e remasterizado da geração clássica, além de material de artistas atuais já consolidados, novos talentos e revelações.

As duas revistas contam com 52 páginas que seguem a proposta original da D-Arte com matérias, seção de correspondência, colunistas, comentários de cinema, conversa franca com os leitores, pôsteres, biografias…

Em 2016 houve o revés do falecimento de Zalla por causa de um câncer recém descoberto no fígado. Pouco antes, Fábio já havia saído do projeto para se dedicar integralmente à produção de histórias para o exterior. Sidemar ressurgiu com novos trabalhos e passou a realizar o trabalho de diagramação das revistas.

Em 2017, Fábio passou a editora para Daniel, que conseguiu aumentar o ritmo dos lançamentos. Por uma questão de resposta dos leitores, e para igualar as numerações, a frequência de Calafrio é atualmente maior que de Mestres do Terror.

Após cinco anos de relançamento, a periodicidade se consolidou como quatro edições de Calafrio e duas de Mestres do Terror por ano, apresentando de forma intercalada, lançamentos bimestrais da editora Ink&Blood. Calafrio, que chegou a estar onze números atrás de Mestres do Terror, está agora a apenas quatro números de distância.

Confira mais informações sobre a Revista Calafrio e Mestres do Terror aqui.

Na nova fase, novos colaboradores chegaram às publicações e consolidaram seu espaço; artistas veteranos que estavam há algum tempo sem publicar quadrinhos, passaram a fazer suas colaborações com os títulos; e, a exemplo do que aconteceu com Sidemar de Castro, houve retorno de antigos colaboradores.

Além das revistas, houve em 2020 a estreia do programa TV Calafrio no canal Milhas e Milhas no Youtube.

Até o final de 2020 foram lançadas 17 edições de Calafrio, 11 de Mestres do Terror, além do especial que comemorou três anos do projeto em 2018 com a Calafrio Especial Mangue Negro, com as HQs que Zalla produziu dentro do ambiente do filme do diretor capixaba Rodrigo Aragão.

Há muitos outros projetos pela editora Ink&Blood para complementar essa encarnação das revistas Calafrio e Mestres do Terror. Os leitores além de continuar acompanhando os títulos, podem aguardar por novidades.

Confira nossa conversa com Daniel Saks no Sobrecapa:

E se você curte HQs de Terror, não deixe de conferir nossa página especial do tema clicando aqui.


Créditos:
Texto: Daniel Saks – revistacalafrio@gmail.com
Imagens: Reprodução
Edição: Alexandre Baptista

Matéria publicada originalmente em 02 de março de 2021.
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