Ultimato do Bacon

O otimismo da ficção científica

Em 7 de Mai de 2020 6 minutos de leitura
A estatua da liberdade faz saudacao nazista em arte do seriado de Ficção Científica O Homem do Castelo Alto da Prime Video, baseada no livro de Philip K. Dick

A visão de um futuro sombrio, caótico ou opressor, é constantemente associada à ficção científica, colocando o gênero como pessimista em relação ao que está por vir.

É como se não houvesse espaço para cenários onde a ciência fosse capaz de superar os problemas que enfrentamos hoje, e estivéssemos condenados a pagar pelos erros que cometemos no presente.

Essa interpretação não é de todo errada. Esse futuro coberto pelas sombras do obscurantismo se mostra como temática de incontáveis títulos e, de maneira geral, é a motivação para que as personagens iniciem suas jornadas na história.

De 1984 à Matrix, o futuro parece ser um obstáculo a ser superado, para então termos a nosso favor tudo o que a tecnologia e a ciência desenvolveram. Naturalmente, esse olhar pessimista está presente no gênero, mas não com exclusividade.

Mesmo em obras com um olhar negativo, há espaço para feixes de esperança e há ainda aquelas que foram construídas integralmente neste formato, embora nem sempre deixem isso claro.

Mas, para entender como esta dinâmica funciona, é importante compreender o outro lado.

Saber as motivações dos futuros tenebrosos pode nos oferecer pistas fundamentais para olhar para o gênero com menos preconceito e conseguir aproveitar o que há de melhor nos livros e filmes de ficção científica.

 

Índice

Os pessimistas da Ficção Científica

 

Embora seja a geração de George Orwell e Robert A. Heinlein que popularizou o pessimismo da ficção científica, é importante destacar que o futuro já não era visto como algo amigável há muito mais tempo.

O cinema mesmo já havia mostrado ao mundo uma visão opressora do futuro em Metropolis (1927). O longa de Fritz Lang abraça a estética expressionista para representar uma sociedade dividida entre poderosos e a classe trabalhadora, onde não há espaço para uma vida em harmonia.

Assim como os demais filmes produzidos na Alemanha durante a década de 1920, a representação do futuro como um ambiente sufocante em Metropolis dialoga com o período de tensão que os alemães enfrentavam.

 
Cena do filme Metropolis de Fritz Lang

Cena de Metropolis de Fritz Lang.

 

O historiador Siegfried Kracauer escreveu De Caligari a Hitler: Uma história psicológica do cinema alemão, (From Caligari to Hitler: A Psychological History of the German Film, 1947), onde dedica as páginas do livro para apontar como “os filmes de uma nação refletem a mentalidade desta de uma maneira mais direta do que qualquer outro meio artístico”, e, por este motivo, o pessimismo era tão presente nos filmes da época.

A mesma ideia pode ser utilizada para compreender Orwell e seus conterrâneos. O cenário pós-guerra foi um grande incentivador para que a visão dos autores fosse dominada por um pessimismo em relação ao futuro, sempre se aproveitando da máxima sobre a ficção científica, que trata o futuro como uma analogia sobre o presente, assim como a tecnologia é usada para criticar a própria humanidade.

 

Outros olhares da Ficção Científica

 

Embora exista um vasto catálogo de obras menos pessimistas no passado da ficção científica, o período entre as décadas de 1960 e 1970 foi particularmente importante para que o olhar dos autores focasse em um futuro de possibilidades.

E, talvez, esse tenha sido o diferencial da geração conhecida como New Wave: o futuro havia deixado de ser um sonho distante e irreal para se tornar uma possibilidade.

Especialista no gênero, John Clute nos lembra que

“Talvez tenha havido um tempo, […], antes do Sputnik, em que os impérios de nossos sonhos de ficção científica eram governados segundo regras reveladas nas páginas da Astounding Science Fiction[1]. […] Mas algo aconteceu. O futuro começou a se tornar real”.

A corrida espacial mostrou um cenário onde o clássico de Georges Méliès, Viagem à Lua (Voyage Dans La Lune, 1902), não apenas era possível — ignorando o fato da Lua ser um ser vivo e, talvez, a presença de vida inteligente no nosso satélite natural —, como havia se tornado o palco de uma disputa entre EUA e URSS.

 

Cena de Viagem à Lua de Georges Méliès.

 

Se, até então, viajar para fora da Terra era algo possível apenas no imaginário do gênero, agora era uma meta real. E isso não tardou para se refletir na imaginação dos autores.

A escritora Ursula K. Le Guin foi uma das que melhor se aproveitou das novas visões para escrever sobre a sociedade sem o pessimismo de outros tempos.

Não que sua obra fosse essencialmente utópica, mas havia um olhar para retratar a humanidade, onde os conflitos não dependiam de situações extremas.

Se Orwell nos entrega um protagonista que tem como motivação o Estado opressor, Le Guin opta por situações que podem quebrar a estabilidade que as sociedades atingiram.

Com essa motivação, não faltou espaço para a ficção científica se mostrar como um campo possível para um certo otimismo.

Octavia Butler, anos mais tarde lançaria Despertar (Dawn, 1987), onde apesar de a humanidade ter acabado com os recursos do planeta Terra, uma raça alienígena conseguiu salvar algumas pessoas, que em breve irão retornar para uma segunda chance.

A maturidade que o gênero demonstra nesse tipo de texto, de não negar o caos, mas permitir um espaço para reconstruir a sociedade, começou a ganhar força sobretudo a partir do final da década de 1970.

E, se a literatura já vinha demonstrando isso, o cinema não estava tão distante.

 

As visões de um futuro possível no audiovisual

 

O cinema de ficção científica tardou um pouco para atingir a maturidade.

Foram necessários dois filmes que trataram o gênero com o respeito que ele exige, para que outros cineastas seguissem o mesmo caminho. 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey) e Planeta dos Macacos (Planet of the Apes), ambos de 1968, já nos mostram como o espaço estava presente nas principais narrativas, que aqui se antagonizam com relação ao futuro da humanidade.

 

A estarrecedora cena final de Planeta dos Macacos de 1968.

 

O final emblemático de Planeta dos Macacos, não oferece um mínimo sinal de redenção, e os lamentos de George Taylor (Charlton Heston) ao perceber que não há esperança, contrasta de modo incisivo com a épica conclusão de 2001: Uma Odisseia no Espaço.

Aqui, a humanidade já é capaz de viajar pelo espaço e, embora sozinho, Dave Bowman (Keir Dullea), tem uma perspectiva de futuro e nós também somos recompensados pelos alienígenas — um discurso presente desde o início do filme, durante a aurora da humanidade.

Mas talvez, poucas produções tenham sido tão otimistas com as possibilidades da ficção científica, quanto Doctor Who e Star Trek.

Não obstante, são também duas das produções mais bem-sucedidas, não apenas do gênero, mas do entretenimento. Ambas nascem na década de 1960, e sua sobrevivência até os dias atuais, mostram, entre outras coisas, como o público buscava (e ainda busca) por obras que não sucumbam aos temores de uma sociedade falida.

 

A tripulação da Enterprise no seriado clássico de Star Trek (1966-1969).

 

Essas produções também explicam, em partes, o sucesso de outra franquia, que também viria a se popularizar de maneira inimaginável.

Star Wars: Uma Nova Esperança (subtítulo que só foi acrescentado alguns anos depois do lançamento, mas que também evidencia as novas possibilidades do gênero) chega aos cinemas em 1977, e carrega muito do espírito de Doctor Who e Star Trek — embora parte dos fãs desta última neguem tal relação.

Ao mesmo tempo, a obra definitiva de George Lucas também definiu o que por muito tempo seria a base das space operas, com jornadas pelo espaço para impedir que um mal maior saísse soberano.

Limitar Star Wars a um filme de bem vs mal, seria ignorar tudo o que o filme (e posteriormente a franquia) representaria para os fãs. A simples possibilidade não se render ao poder do Império, já permite que a obra expresse um otimismo, tão necessário para quem se cansou da visão pessimista de um futuro imaginável.

 
Poster de star wars uma nova esperança de 1977

Poster de 1977 do então chamado Guerra nas Estrelas.

 

É difícil mensurar toda a capacidade que a ficção científica tem para explorar o futuro, mas o histórico nos mostra que nem sempre o futuro precisa ser visto como algo sombrio.

Vale ainda lembrar, que em muitos cenários, a opção de falar sobre um cenário pessimista, funciona mais como um alerta, a partir de situações já vividas e que causaram angústias e conflitos com terríveis consequências (Metropolis é sempre um bom exemplo nesse sentido).

Não cabe aos autores de ficção científica oferecer respostas aos problemas. Mas, ao imaginar diferentes cenários, é possível saber como a realidade pode ser tanto favorável, quanto opressora à humanidade. Por esse motivo, se tempos sombrios merecem ser respondidos à altura, as possibilidades também devem ganhar um espaço, como um caminho viável.

Afinal, este é o grande poder da ficção científica: nos oferecer possibilidades.

 


Créditos e Notas:

Texto: Robinson Samulak

Imagens: Reprodução

Edição: Alexandre Baptista

[1] Revista de ficção científica e fantasia, fundada em 1930, foi uma das mais importantes para a consolidação do gênero nos Estados Unidos.

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