A visão de um futuro sombrio, caótico ou opressor, é constantemente associada à ficção científica, colocando o gênero como pessimista em relação ao que está por vir.
É como se não houvesse espaço para cenários onde a ciência fosse capaz de superar os problemas que enfrentamos hoje, e estivéssemos condenados a pagar pelos erros que cometemos no presente.
Essa interpretação não é de todo errada. Esse futuro coberto pelas sombras do obscurantismo se mostra como temática de incontáveis títulos e, de maneira geral, é a motivação para que as personagens iniciem suas jornadas na história.
De 1984 à Matrix, o futuro parece ser um obstáculo a ser superado, para então termos a nosso favor tudo o que a tecnologia e a ciência desenvolveram. Naturalmente, esse olhar pessimista está presente no gênero, mas não com exclusividade.
Mesmo em obras com um olhar negativo, há espaço para feixes de esperança e há ainda aquelas que foram construídas integralmente neste formato, embora nem sempre deixem isso claro.
Mas, para entender como esta dinâmica funciona, é importante compreender o outro lado.
Saber as motivações dos futuros tenebrosos pode nos oferecer pistas fundamentais para olhar para o gênero com menos preconceito e conseguir aproveitar o que há de melhor nos livros e filmes de ficção científica.
Índice
Os pessimistas da Ficção Científica
Embora seja a geração de George Orwell e Robert A. Heinlein que popularizou o pessimismo da ficção científica, é importante destacar que o futuro já não era visto como algo amigável há muito mais tempo.
O cinema mesmo já havia mostrado ao mundo uma visão opressora do futuro em Metropolis (1927). O longa de Fritz Lang abraça a estética expressionista para representar uma sociedade dividida entre poderosos e a classe trabalhadora, onde não há espaço para uma vida em harmonia.
Assim como os demais filmes produzidos na Alemanha durante a década de 1920, a representação do futuro como um ambiente sufocante em Metropolis dialoga com o período de tensão que os alemães enfrentavam.
Cena de Metropolis de Fritz Lang.
O historiador Siegfried Kracauer escreveu De Caligari a Hitler: Uma história psicológica do cinema alemão, (From Caligari to Hitler: A Psychological History of the German Film, 1947), onde dedica as páginas do livro para apontar como “os filmes de uma nação refletem a mentalidade desta de uma maneira mais direta do que qualquer outro meio artístico”, e, por este motivo, o pessimismo era tão presente nos filmes da época.
A mesma ideia pode ser utilizada para compreender Orwell e seus conterrâneos. O cenário pós-guerra foi um grande incentivador para que a visão dos autores fosse dominada por um pessimismo em relação ao futuro, sempre se aproveitando da máxima sobre a ficção científica, que trata o futuro como uma analogia sobre o presente, assim como a tecnologia é usada para criticar a própria humanidade.
Outros olhares da Ficção Científica
Embora exista um vasto catálogo de obras menos pessimistas no passado da ficção científica, o período entre as décadas de 1960 e 1970 foi particularmente importante para que o olhar dos autores focasse em um futuro de possibilidades.
E, talvez, esse tenha sido o diferencial da geração conhecida como New Wave: o futuro havia deixado de ser um sonho distante e irreal para se tornar uma possibilidade.
Especialista no gênero, John Clute nos lembra que
“Talvez tenha havido um tempo, […], antes do Sputnik, em que os impérios de nossos sonhos de ficção científica eram governados segundo regras reveladas nas páginas da Astounding Science Fiction[1]. […] Mas algo aconteceu. O futuro começou a se tornar real”.
A corrida espacial mostrou um cenário onde o clássico de Georges Méliès, Viagem à Lua (Voyage Dans La Lune, 1902), não apenas era possível — ignorando o fato da Lua ser um ser vivo e, talvez, a presença de vida inteligente no nosso satélite natural —, como havia se tornado o palco de uma disputa entre EUA e URSS.
Cena de Viagem à Lua de Georges Méliès.
Se, até então, viajar para fora da Terra era algo possível apenas no imaginário do gênero, agora era uma meta real. E isso não tardou para se refletir na imaginação dos autores.
A escritora Ursula K. Le Guin foi uma das que melhor se aproveitou das novas visões para escrever sobre a sociedade sem o pessimismo de outros tempos.
Não que sua obra fosse essencialmente utópica, mas havia um olhar para retratar a humanidade, onde os conflitos não dependiam de situações extremas.
Se Orwell nos entrega um protagonista que tem como motivação o Estado opressor, Le Guin opta por situações que podem quebrar a estabilidade que as sociedades atingiram.
Com essa motivação, não faltou espaço para a ficção científica se mostrar como um campo possível para um certo otimismo.
Octavia Butler, anos mais tarde lançaria Despertar (Dawn, 1987), onde apesar de a humanidade ter acabado com os recursos do planeta Terra, uma raça alienígena conseguiu salvar algumas pessoas, que em breve irão retornar para uma segunda chance.
A maturidade que o gênero demonstra nesse tipo de texto, de não negar o caos, mas permitir um espaço para reconstruir a sociedade, começou a ganhar força sobretudo a partir do final da década de 1970.
E, se a literatura já vinha demonstrando isso, o cinema não estava tão distante.
As visões de um futuro possível no audiovisual
O cinema de ficção científica tardou um pouco para atingir a maturidade.
Foram necessários dois filmes que trataram o gênero com o respeito que ele exige, para que outros cineastas seguissem o mesmo caminho. 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey) e Planeta dos Macacos (Planet of the Apes), ambos de 1968, já nos mostram como o espaço estava presente nas principais narrativas, que aqui se antagonizam com relação ao futuro da humanidade.
A estarrecedora cena final de Planeta dos Macacos de 1968.
O final emblemático de Planeta dos Macacos, não oferece um mínimo sinal de redenção, e os lamentos de George Taylor (Charlton Heston) ao perceber que não há esperança, contrasta de modo incisivo com a épica conclusão de 2001: Uma Odisseia no Espaço.
Aqui, a humanidade já é capaz de viajar pelo espaço e, embora sozinho, Dave Bowman (Keir Dullea), tem uma perspectiva de futuro e nós também somos recompensados pelos alienígenas — um discurso presente desde o início do filme, durante a aurora da humanidade.
Mas talvez, poucas produções tenham sido tão otimistas com as possibilidades da ficção científica, quanto Doctor Who e Star Trek.
Não obstante, são também duas das produções mais bem-sucedidas, não apenas do gênero, mas do entretenimento. Ambas nascem na década de 1960, e sua sobrevivência até os dias atuais, mostram, entre outras coisas, como o público buscava (e ainda busca) por obras que não sucumbam aos temores de uma sociedade falida.
A tripulação da Enterprise no seriado clássico de Star Trek (1966-1969).
Essas produções também explicam, em partes, o sucesso de outra franquia, que também viria a se popularizar de maneira inimaginável.
Star Wars: Uma Nova Esperança (subtítulo que só foi acrescentado alguns anos depois do lançamento, mas que também evidencia as novas possibilidades do gênero) chega aos cinemas em 1977, e carrega muito do espírito de Doctor Who e Star Trek — embora parte dos fãs desta última neguem tal relação.
Ao mesmo tempo, a obra definitiva de George Lucas também definiu o que por muito tempo seria a base das space operas, com jornadas pelo espaço para impedir que um mal maior saísse soberano.
Limitar Star Wars a um filme de bem vs mal, seria ignorar tudo o que o filme (e posteriormente a franquia) representaria para os fãs. A simples possibilidade não se render ao poder do Império, já permite que a obra expresse um otimismo, tão necessário para quem se cansou da visão pessimista de um futuro imaginável.
Poster de 1977 do então chamado Guerra nas Estrelas.
É difícil mensurar toda a capacidade que a ficção científica tem para explorar o futuro, mas o histórico nos mostra que nem sempre o futuro precisa ser visto como algo sombrio.
Vale ainda lembrar, que em muitos cenários, a opção de falar sobre um cenário pessimista, funciona mais como um alerta, a partir de situações já vividas e que causaram angústias e conflitos com terríveis consequências (Metropolis é sempre um bom exemplo nesse sentido).
Não cabe aos autores de ficção científica oferecer respostas aos problemas. Mas, ao imaginar diferentes cenários, é possível saber como a realidade pode ser tanto favorável, quanto opressora à humanidade. Por esse motivo, se tempos sombrios merecem ser respondidos à altura, as possibilidades também devem ganhar um espaço, como um caminho viável.
Afinal, este é o grande poder da ficção científica: nos oferecer possibilidades.
Créditos e Notas:
Texto: Robinson Samulak
Imagens: Reprodução
Edição: Alexandre Baptista
[1] Revista de ficção científica e fantasia, fundada em 1930, foi uma das mais importantes para a consolidação do gênero nos Estados Unidos.
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